8.7.04

Os sinos nunca tocam neste lado do monte (2)

Déjane falava-me:
- Onde trabalhas agora?
- Fui transferido para a Carsworth; tenho a meu cargo a manutenção de dez linhas produtivas. Durante os dois turnos semanais só vejo robots e por vezes um inspector que, ainda que seja humano, faz por não o parecer.
- Eu agora estou no norte, na Mansleep. Já ando enjoado de tanto viajar no turbojet. – Kaspar Boll fez um esgar de nojo quando mencionou a palavra.
- Enquanto tu viajas de turbojet, há milhões que nem um gallebrot têm para comer.
Harlan Swimm sempre se preocupara demais com os outros, daí talvez as rugas que cada vez mais lhe pesavam na face.
Fez-se de novo o silêncio. O sorver lento do líquido quente aclarou-me o pensamento e levou para longe um pouco da angústia que sentia.
Martie Schon levantou-se num ímpeto.
- Mas o que fazemos aqui, meu deus? Escolhemos o próximo?
Martie era modelista mental na Sunnet Enterprises, impulsiva por natureza e loura por vontade própria.
- Podias falar sem arcaísmos.
- Fazias melhor se estivesses calado, Harlan. Com todas as tuas preocupações sociais e com todo o teu rigor de comportamento és o mais egoísta de todos nós.
Harlan lançou-lhe um olhar gélido.
- Julgas-te superior, mais equilibrado que qualquer um de nós, pensas que quando todos estivermos ausentes tu ainda estarás aqui! Não penses isso, Harlan, podes ser o próximo.
Sentou-se e parou de falar tal como começara, num ímpeto, e fixou o olhar num ponto indefinido da alcatifa que cobria o chão.
Pelo que me tocava, e embora não o sentisse, podia ser eu o próximo. Eu, Paul Stephenson, técnico superior de manutenção, trinta e um anos, cujo epitáfio seria, se me respeitassem a última vontade, "não quero ser bolacha!". Não, não seria em mármore, nem teria razão para o ser. Não haveria campa, nem caixa de cinzas, apenas meia dúzia de bytes esquecidos numa qualquer memória prímeva de um periférico de computador. Podia ser eu o próximo!
- 'A dor que sinto não é minha
É a dor de todos os que sentem
Por se sentirem a mais nesta ilha.
Talvez um dia, um qualquer dia, nos divisemos no Além.'

Fora Déjane quem dissera as palavras, saídas da sua boca como se de uma lengalenga se tratasse. Todos sabíamos o poema, era como uma senha do grupo. Tinha sido decorado no tempo da escola, quando o futuro ainda era distante e a morte um sonho que ficava noutro lado.
Alexeiev Smithreens: 'Ode a uma probabilidade reduzida', escrito no exílio, na Antártida, em Agosto de 56. Em Agosto de 2356. Quando tiver tempo, talvez leia mais algum livro seu...
- Vamos embora – disse Rijkaard Aygens, do alto dos seus dois metros culminados por uma cabeleira de um louro quase branco.
- Sim, vamos embora. – concordei eu.
- Vêmo-nos no próximo sábado - disse Magda.
Os murmúrios de concordância foram os últimos sons que ouvi nessa tarde cinzenta, na casa de Ernst Ribbon.

- Já acordaste?
- Não.
- Então como é que respondes?
- É automático, em mim.
- Burro!
Atirou-me com a almofada e levantou-se de seguida, indo para a casa de banho.
Déjane era a minha companheira habitual. Há mais de um ano que tínhamos trocado os olhares pelas carícias. É evidente que não vivíamos juntos, nem faria sentido viver. O espaço já era pouco para um, com duas pessoas o apartamento tornar-se-ia inabitável.
Senti o ruído da água corrente na casa de banho. Liguei a TV: um locutor esgrouviado gritava as últimas notícias, secundado pelas imagens que corriam ao seu lado.
"... e outros actos de canibalismo ocorreram, devidos também à ruptura da rede alimentar. Na Amazónia Interior a carga da polícia e as disputas consequentes provocaram cerca de três mil vítimas mortais. Todas as vítimas eram Ausless. Passemos agora..."
O écran escureceu quando desliguei o televisor. As notícias variavam pouco. Mudavam os lugares, mas os acontecimentos não: actos de canibalismo, seguidos da inevitável repressão policial; massacres sangrentos cometidos por suicidas loucos; reuniões ocas de chefes políticos que pretensamente resolveriam os problemas... Sempre igual a si mesmo, o homem.
- Vais tomar banho, Paul?
- Talvez.
- Eh, tanta amargura! Porquê, Paul? A tua dor não vai modificar o mundo. Ele corre por si, e rola sempre pelos caminhos mais profundos. Nunca ouviste falar da Lei da Mediocridade de Affar?
- Conheço-a bem demais.
Ela soltou um gorjeio.
- Vejo-te no sábado, em casa da Martie. Adeus.
- Adeus...
Deixei-me ficar afundado na poltrona coçada por muitos momentos de preguiça e desânimo. O turno extra que faria no domingo parecia pesar-me já nas pernas. Que se lixasse! Seriam apenas seis horas de trabalho.